Vivemos em uma
época tumultuada no Brasil devido aos protestos da população nas ruas de várias
cidades e ao reexame do golpe de 1964 que instaurou no país a ditadura
civil-militar. Este período político se caracterizou por repressões violentas e
gerou consequências sentidas até os dias atuais na sociedade brasileira, tais
como o agravamento das desigualdades sociais, ao aprofundamento da violência
institucional policial, dentre outras.
Ante este
contexto complexo e desafiante, muito natural de se pensar qual o papel dos
espíritas diante de tantos acontecimentos e as possíveis interpretações
baseadas no arcabouço doutrinário. Mais ainda, surgem justas indagações sobre a
participação ou ausência do espírita no universo da política partidária, das
manifestações populares, do clamor pelas mudanças nas instituições da
democracia representativa e da melhoria dos serviços públicos -transporte e
segurança em destaque.
Os próprios
movimentos espíritas, em especial os brasileiros, criaram discursos sobre a
vocação de certas nações no concerto diplomático internacional. A crença mais
difundida trabalha a ideia de Brasil como coração do mundo e pátria do evangelho.
Haveria uma missão do nosso país de guiar espiritualmente o globo rumo ao estágio
da regeneração. Nossa história autoriza e valida tal discurso? A violência
colonial que nos marca ainda hoje, a ditadura recente e tantos fatores da
sociedade em curso nos chamam atenção para uma discrepância notável entre um
ideal romantizado em ambiente espiritista e os fatos rotineiros.
No aniversário
do fatídico golpe, precisamos valorizar os questionamentos, advogar a liberdade
de expressão, até para que mesmo as opiniões extremamente impopulares possam ser
expressas. Thomas Jefferson, um dos pais da independência estadunidense, já
trazia este ideal na organização daquela democracia nascente: “Prometo usar
minhas faculdades críticas. Prometo desenvolver minha independência de
pensamento. Prometo me educar de modo a poder formar minhas próprias opiniões.”
Há certamente
um preço por tal conduta autônoma. A maioria de nós é a favor da liberdade de
expressão quando existe perigo de nossas opiniões serem reprimidas, mas não ficamos
tao contrariados se opiniões que desprezamos enfrentam censura aqui ou acolá. Conforme
se lê na obra O mundo assombrado pelos demônios, capítulo homônimo ao artigo: “Em
seu famoso livrinho On Liberty,o
filósofo inglês John Stuart Mill afirmava que silenciar uma opinião é um ‘mal
peculiar’. Se a opinião é correta, somos roubados da ‘oportunidade de trocar o
erro pela verdade’; e, se está errada, somos privados de uma compreensão mais
profunda da verdade em ‘sua colisão com o erro’. Se conhecêssemos apenas o
nosso lado da argumentação, mal sabemos sequer esse pouco; ele se torna
desgastado, logo aprendido de cor, não testado, uma verdade pálida e sem vida.”
O próprio Espiritismo
incentiva, pela sua origem e natureza metodológica, científica, a liberdade de
pensar e de consciência como seus pilares fundamentais. Faz-se mister
questionarmos lucidamente o discurso ufanista-nacionalista surgido na década de
1930 dentro dos arraiais espíritas brasileiros sobre uma suposta missão da
pátria, com argumentos ingênuos e superficiais. Observemos a Codificação Kardeciana,
que registra em O Livro dos Espíritos: “837. Qual é o resultado dos entraves
postos à liberdade de consciência? Constranger os homens a procederem em
desacordo com o seu modo de pensar, fazê-los hipócritas. A liberdade de
consciência é um dos caracteres da verdadeira civilização e do progresso.”
Somos todos
convidados a perguntar, duvidar, criticar. Se não podemos pensar por nós
mesmos, se não estamos dispostos a questionar a autoridade, somos apenas massa
de manobra nas mãos daqueles que detêm o poder. Mas, se os cidadãos são
educados e formam as suas próprias opiniões, aqueles que detêm o poder
trabalham para nós. Diante da história do nosso país, das
atrocidades da ditadura civil-militar ora em pauta novamente em virtude dos 50
anos do golpe, precisamos ser mais críticos com relação ao discurso irrefletido
de amplos setores dos movimentos espíritas sobre o Brasil pátria do Evangelho, bem
como as consequências funestas decorrentes desta ideia, tais como a passividade
social e o conluio com os opressores de todas as esferas (tanto políticas
quanto espiritistas).
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