terça-feira, 29 de abril de 2014

Fora do Brasil não há salvação

Parece estranho ao leitor familiarizado com Espiritismo uma tal afirmativa que intitula este texto. Soa arrogante, sectarista e chauvinista. Todo aquele sujeito minimamente informado da Doutrina Espírita sabe de sua enfase na ação caritativa como modo de obter a salvação, entendida como pleno desenvolvimento espiritual do ser. Não advoga a pretensão da verdade total, posto que contraria sua própria dialética epistemológica bem como provocaria divisão e animosidade, alimentando egos e interesses escusos. A Lei de Deus pode ser observada por toda criatura, independente de suas crenças, vínculos religiosos, etnia ou nacionalidade.
Jesus nos ensina que muitos serão os chamados mas poucos os escolhidos (Mt, 22:1-4), simbolizando na Parábola da Festa de Núpcias que a bondade divina oferece oportunidades e recursos para todos espíritos e agrupamentos humanos colaborarem no progresso individual e coletivo do orbe terrestre, no entanto somente os que tiverem purificados os corações pela prática da caridade estarão em condições para usufruir do banquete celeste. Adicionando a essa ideia a compreensão do processo reencarnatório que nos faculta viver em diferentes lugares no globo (e também em outros planetas), é evidente que a afirmação inicial é falsa.
Nada obstante, devido ao nosso entranhado senso de superioridade, filho de nosso orgulho, típico de nossas ilusões egoicas, é bastante comum considerar-mo-nos por motivos quaisquer de âmbito exterior (nacionalidade, crença religiosa, condição econômica, etc) melhores que os demais mortais. Quantas vezes escutamos a pérola do “privilégio de nascer em berço espírita”, dentre outras colocações petulantes nos movimentos espiritistas. Note-se a flagrante incoerência com os próprios postulados fundamentais do Espiritismo acima abordados. Ve-se também com frequência tal distinção em virtude da missão espiritual brasileira.
A tese surgiu na década de 1930, inicialmente com palestras de Leopoldo Machado na sede da Federação Espírita Brasileira (aquela época no Rio de Janeiro) e posteriormente catapultadas a fama e aceitação quase unanime com o lançamento do livro “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho” (autoria de Humberto de Campos pela psicografia de Chico Xavier).  Nada absurdo a princípio, porque da mesma forma que existem missões individuais, pode-se perfeitamente atribuir missões a povos inteiros. A história nos mostra o povo hebreu apresentando as condições mais sócio-cultural-espiritual adequadas para a vinda do Mestre.
O questionamento se refere principalmente à interpretação romanceada, rosácea, assaz inocente dos acontecimentos passados do Brasil, negando nossa violência histórica e constitucional, tais como nos episódios marcantes da Guerra do Paraguai e da escravidão (quase justificada por uma necessidade das vítimas, absurdo inaceitável). A visão estereotipada do passado reforça a passividade do presente e a alienação para a construção do futuro da nação. Muitas pessoas assumem e reproduzem irrefletidamente estas ideias, ainda na cultura do guiismo mediúnico e da ausência de crítica sistemática das comunicações.
Se à nação brasileira esta reservada uma missão espiritual no conjunto do progresso global, esta não é isolada das demais nações e nem é exclusiva. Por toda parte há contribuições coletivas para as melhorias espirituais do nosso planeta, cada povo, cada nacionalidade cumprindo seu papel. Portanto, nada de pretensões de superioridade brasileira neste quesito muito menos arroubos de messianismo. Somos tao importantes para conquistar a Regeneração planetária quanto os demais países do concerto internacional. O caráter distintivo de cada povo se deve ao união de Espíritos simpáticos formando famílias pela semelhança de seus pendores mais ou menos purificados, segundo sua elevação.
Reforçando a argumentação, recorremos a O Livro dos Espíritos: “317. Após a morte, conservam os Espíritos o amor da pátria? ‘O princípio é sempre o mesmo. Para os Espíritos elevados, a pátria é o Universo. Na Terra, a pátria, para eles, está onde se ache o maior número das pessoas que lhes são simpáticas.’” (grifo nosso). Isso não se condiciona a geografia ou belezas naturais do lugar ou a distinções concedidas por avatares.

Encerramos as reflexões novamente com a palavra lúcida da Espiritualidade superior, também retirada de O Livro dos Espíritos em resposta à pergunta 788 (grifo nosso): “Os povos, que apenas vivem a vida do corpo, aqueles cuja grandeza unicamente assenta na força e na extensão territorial, nascem, crescem e morrem, porque a força de um povo se exaure, como a de um homem. Aqueles, cujas leis egoísticas obstam ao progresso das luzes e da caridade, morrem, porque a luz mata as trevas e a caridade mata o egoísmo. Mas, para os povos, como para os indivíduos, há a vida da alma. Aqueles, cujas leis se harmonizam com as leis eternas do Criador, viverão e servirão de farol aos outros povos.”

terça-feira, 22 de abril de 2014

Espiriteiros

Na dita pátria do evangelho, seria de esperar movimentos espíritas pujantes, permeados da racionalidade Kardeciana e de práticas sensatas. Afinal, se temos relevante missão espiritual a cumprir nada mais natural que esperar condições apropriadas para tanto e pessoas preparadas e comprometidas. Acompanhemos as reflexões tecidas por Richard Simonetti, que constam de sua obra Quem tem medo dos Espíritos?.

A possibilidade de se melhorarem noutra existência não será de molde afazer que certas pessoas perseverem no mau caminho, dominadas pela ideia de que poderão corrigir-se mais tarde?


Aquele que assim pensa em nada crê e a ideia de um castigo eterno não o refrearia mais do que qualquer outra, porque sua razão a repele, e semelhante ideia induz à incredulidade a respeito de tudo. Se unicamente meios racionais se tivessem empregado para guiar os homens, não haveria tantos cépticos. De fato, um Espírito imperfeito poderá, durante a vida corporal, pensar como dizes; mas, liberto que se veja da matéria, pensará de outro modo, pois logo verificará que fez cálculo errado e, então, sentimento oposto a esse trará ele para sua nova existência. É assim que se efetua o progresso e essa a razão porque, na Terra, os homens são desigualmente adiantados (....). (Questão 195 de O Livro dos Espíritos)


Não encontraremos no dicionário a expressão ”espiriteiro”.


Podemos situá-la como um neologismo (palavra nova) para definir pessoas que se ligam ao Centro Espírita desligadas das finalidades do Espiritismo.


Espiriteiro é o ”papa-passes”, que comparece às reuniões apenas para receber sua ”hóstia” depuradora, representada pela transfusão magnética.


Frequentador assíduo de ”consultórios do Além”, grupos mediúnicos que se formam apenas para receber favores espirituais, não consegue compreender que o Espiritismo não é mero salva-vidas para acidentes existenciais nascidos de sua própria invigilância.


Refratário a qualquer compromisso que imponha disciplinas de horário e assiduidade, alega absoluta falta de tempo, sem atentar a um princípio elementar: tempo é uma questão de preferência.


Kardec fala dos espiriteiros, em ”O Evangelho Segundo o Espiritismo”, no capítulo XVII: Nalguns, ainda muito tenazes são os laços da matéria para permitirem que o Espírito se desprenda das coisas da Terra; a névoa que os envolve tira-lhes a visão do infinito, donde resulta não romperem facilmente com os seus pendores, nem com seus hábitos, não percebendo haja qualquer coisa melhor do que aquilo de que são dotados.


Têm a crença nos Espíritos como um simples fato, mas que nada ou bem pouco lhes modifica as tendências instintivas. Numa palavra: não divisam mais do que um raio de luz, insuficiente- para guiá-los e a lhes facultar uma vigorosa aspiração, capaz de lhes sobrepujar as inclinações.


Atêm-se mais aos fenômenos do que à moral, que se lhes afigura cediça e monótona.


Pedem aos Espíritos que incessantemente os iniciem em novos mistérios, sem procurar saber se já se tornaram dignos de penetrar os arcanos do Criador.


Esses são os espíritas imperfeitos, alguns dos quais ficam a meio caminho ou se afastam de seus irmãos em crença, porque recuam ante a obrigação de se reformarem, ou então guardam as suas simpatias para os que lhes compartilham das fraquezas e das prevenções.


Tive um amigo espiriteiro, um ”bon vivant”, dado a aventuras extraconjugais e viciações. Embalado pelo comodismo, surdo e cego aos princípios espíritas que dizia esposar, justificava sua posição:


- Temos milênios pela frente, nos domínios da eternidade. Retornaremos incontáveis vezes ao educandário terrestre. Por isso não há pressa. O que não fizer hoje, faço amanhã. Além do mais, ninguém é de ferro. Disciplina demais é tirania do cérebro sobre o coração. Como ensinava Jesus, ”o Espírito é forte, mas a carne é fraca”. Homem que sou, não posso furtar-me às contingências do mundo. Incrível! Uma observação tão séria de Jesus, em circunstância dramática, é vulgarizada, com inversão de seu significado para justificar os desatinos de um espiriteiro!


Textualmente, segundo Marcos (14:38), diz Jesus: Vigiai e orai para que não entreis em tentação.


O Espírito, na verdade., está pronto, mas a carne é fraca.


O Mestre fez esta advertência no Horto, antes de ser entregue soldados romanos. Em plena madrugada recomendava aos discípulos que o ajudassem na vigília, buscando, em oração, a proteção divina para os testemunhos que viriam.


Embora a fraqueza da carne representasse naquele momento o sono que insistia em apossar-se dos discípulos, ficou o simbolismo vigoroso quanto à necessidade de vigiarmos nossos pensamentos, a fim de não nos deixarmos dominar por impulsos incompatíveis com os princípios religiosos que esposamos.


O grande recurso, nesse propósito, é a oração, evocando as forças do Céu, no empenho por mantermos nossa integridade moral.


O reconhecimento, pois, de que ”a carne é fraca”, deve ser, à luz dos ensinamentos evangélicos, uma advertência; jamais uma justificativa para deslizes de comportamento.


A intenção de transferir para um futuro remoto nossas realizações espirituais, como pretendia nosso amigo espiriteiro, é algo um tanto irracional, porquanto o contato com a verdade implica em compromisso com ela.


É até compreensível que alguém se recuse a levar a sério a ideia de que há penas e castigos eternos para os que não se ajustam a determinados princípios religiosos. Quando aprendemos a raciocinar escasseia espaço em nosso cérebro para a fantasia.


O mesmo não ocorre com a ideia da reencarnação, que se exprime na lógica, dando-nos conhecimento dos porquês da existência humana, onde somos convocados ao desenvolvimento de nossas potencialidades criadoras, superando mazelas e imperfeições.


Sobretudo, ficamos sabendo que a Dor, a grande mestra, tende a acentuar sua energia na proporção em que, tomando conhecimento do que nos compete, deixamos de fazê-lo.


***


Abeberando-nos do conhecimento espírita, não haverá justificativa para a omissão. Partindo da afirmativa evangélica de que muito será pedido ao que muito recebe, concluímos que nós, espíritas, estaremos sempre em débito com a Doutrina, porquanto o empenho de uma vida será pouco, ante a gloriosa visão de realidade espiritual que ela desdobra aos nossos olhos.


Companheiros que se manifestam nos Centros Espíritas a que estiveram vinculados, reportam-se a esse problema.


Não tiveram dificuldade em reconhecer sua nova condição, bafejados pelo conhecimento doutrinário.


Habilitam-se à proteção de benfeitores amorosos, ligados que estiveram a atividades no campo da fraternidade humana.


Reportam-se a indescritíveis emoções, no reencontro com familiares queridos.


Mas, com freqüência, revelam indefinível tristeza, por não terem aproveitado integralmente as oportunidades recebidas.


Guardam a nostalgia do ideal espírita não realizado. Embora as conquistas alcançadas como espíritas, não conseguem furtar-se à penosa impressão de que estiveram mais para espiriteiros...



terça-feira, 15 de abril de 2014

O legado da ditadura no Brasil

Por Maria Cristina Longo
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/28130

O golpe militar completa 50 anos e é o momento de lembrar o imenso desastre que esse evento representou para a esmagadora maioria da sociedade brasileira. Esse regime depôs o então presidente João Goulart simplesmente porque ousou mencionar algumas reformas de base como a reforma agrária. O golpe de 64 instaurou uma sangrenta ditadura no Brasil, em que todos aqueles que pensavam e expressavam suas opiniões de modo diferente ao do Estado militar e da classe dominante foram cruelmente perseguidos, torturados e mortos por esse regime político.

O regime polí­tico ditatorial tratou, rapidamente, de agir em inúmeras frentes para beneficiar a classe dominante brasileira, para apoiar grandes grupos econômicos internacionais e para reprimir e tentar domesticar o povo brasileiro.

As frentes consistiram em controlar totalmente o poder polí­tico em todos os âmbitos, municipal, estadual, federal, bem como o legislativo e judiciário, em desmantelar a educação pública brasileira, em construir um plano de desenvolvimento para o paí­s que beneficiasse apenas e tão somente os donos das multinacionais aliados à classe dominante brasileira, em controlar os meios de comunicação, e todas as formas de arte e expressão popular, em militarizar o aparato estatal (central e regional com suas polícias) para impedir qualquer contestação ao que estivesse ocorrendo.

A ditadura militar utilizou o poder político para colocar em prática um plano econômico para o paí­s que privilegiou rodovias ao invés de 
ferrovias e hidrovias, beneficiando as grandes montadoras internacionais e a classe dominante brasileira associada a essas grandes grupos econômicos. O plano, visivelmente, não beneficiou a maior parte da população, mas essencialmente os interesses internacionais e de uma elite local ao produzir veí­culos motorizados e escoar sua produção dentro do paí­s. O mesmo que ocorreu nesse ramo da economia ocorreu em inúmeras outras decisões nacionais tomadas autoritariamente de cima para baixo. As cidades brasileiras cresceram desordenadamente, sem nenhum planejamento, como resultado de um grande fluxo migratório de pessoas em busca de novos postos de emprego.

Contudo, para que construir e planejar cidades se a elite dominante que controlava o poder polí­tico através dos militares podia pagar por tudo que desejasse, como educação, saúde, habitação, lazer e transporte?

Da área da educação foi roubada a nossa história. Foram apagados dos livros de história qualquer vestí­gio de revoltas internas e momentos contestatórios para passar uma impressão aos estudantes de que somos um povo pací­fico e feliz. Foi introduzida a disciplina de educação moral e cí­vica como forma de mostrar a necessidade que haveria em sermos um povo que se comporta.

Os meios de comunicação e outros meios de expressão artí­sticos foram cuidadosamente controlados pelos censores da ditadura, punindo aqueles que tentassem criticar ou denunciar qualquer prática abusiva por parte dos agentes econômicos dominantes ou por parte do Estado. É importante ressaltar que a rede Globo de televisão e outros meios de comunicação que existem ainda hoje apoiaram o golpe militar de 64.

A militarização federal e das polí­cias foi um dos resultados do golpe que reprimia violentamente qualquer manifestação popular desde as passeatas que pediam a volta da democracia até as greves que ocorriam no ABC de São Paulo.

Quais são os resultados de tamanha polí­tica autoritária? Imenso 
autoritarismo nas forças armadas e nas polí­cias, especialmente na polícia  militar que continua reprimindo violentamente qualquer movimento social, a  mando do Estado brasileiro aliado a interesses privados. O caos urbano em  que quase todas as cidades brasileiras encontram-se, como a extrema  dificuldade de locomoção derivada da opção por transporte privado em  detrimento de transporte coletivo. A deterioração da educação pública,  a concentração de renda que possui consequências perversas para maioria  dos brasileiros que mal conseguem sobreviver com menos de um ou dois salários mí­nimos mensais.

Enfim, problemas de hoje derivados de decisões autoritárias passadas.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Que país é este?

A famosa banda Legião Urbana nos legou grandes pérolas da música brasileira, incluindo composições de natureza reflexiva-crítica do Brasil e das brasilidades. O ponto alto talvez seja a letra homônima ao título deste texto, na qual é feita uma leitura geral das condições sócio-culturais da pátria amada. A arte musical nos tem servido como uma das formas mais notáveis de manifestação de indignações políticas e das utopias de uma nação melhorada em seu funcionamento e organização.
Desde os anos de chumbo da ditadura civil-militar até os dias atuais, seja na MPB ou nos raps e funks nascidos nas periferias deste imenso Brasil, são as variegadas formas de veicular pela música as críticas aos problemas graves e comuns da nação. O poder imediato de comunicar-se aos sentimentos justifica em grande parte a escolha de tal modalidade artística, bem como de sua fácil penetração em todas camadas sociais. Some-se a isso a musicalidade que é um dos fatores que compõem nossa nacionalidade.
Todos nós crescemos num caldo cultural aonde somos bombardeados com estereótipos sobre nosso país continental, variando das proposições ufanistas até as objeções mais pessimistas. Em comum podemos concluir a complexidade de nossa população e seu alto grau de contradições internas, desafiando os mais experientes analistas e investigadores.  Chegamos ao entendimento, observando nossa história e realidades, que moramos em diferentes Brasis, que guardam entre si o desejo de autoidentificação e a necessidade de diferenciação, simultaneamente.
Um dos caracteres mais definidores e participadores de nossas identidades brasileiras é o âmbito do religioso. Parece que ser brasileiro é estar implicado em alguma forma de discurso religioso ocidental e suas leituras de mundo. A religiosidade marca de maneira poderosa nossos anseios de autopercepção e identidade nacional positiva. Há uma certa crença amplamente difundida da cordialidade espontânea do povo brasileiro, a se expressar em especial por uma acreditada convivência pacífica de várias matrizes religiosas.
Muito esperado que tal ânsia fosse verificada também nos movimentos espíritas brasileiros, que construíram a partir da década de 1930, ideologias e legitimações mediúnicas de uma supostas missão espiritual relevante da terra brasilis. De alguma foram este discurso caiu bem na época ufanista em que surgiu e historicamente tem produzido resignação irrefletida ante um cotidiano tao penoso e contextos econômicos desfavoráveis. Curioso notar que algo semelhante aconteceu apenas (por enquanto) na França, através do autor Léon Denis (vide por exemplo “O mundo invisível e a guerra”).
Diante de tao complexa questão, sempre com respostas variantes no espaço e no tempo, e após séculos de exploração estrangeira, a índole brasileira parece inclinada a um discurso salvacionista-religioso que possa justificar as misérias nacionais e projetar-lhes um futuro espiritual glorioso, com os missionários brasileiros conduzindo o globo à regeneração da Humanidade terráquea. O grande consolo das penúrias e o estímulo a uma nacionalidade comum seria nosso projeto de liderança espiritual.

A doutrina espírita nos convoca incessantemente à criticidade de tudo, incluindo às comunicações mediúnicas. Que país é este que se diz portador de tao elevada e nobre missão? Nossa história repleta de violências e nossas realidades permeadas de privilégios e exclusões condizem com uma pátria do evangelho? Lemos em O Livro dos Espíritos, resposta da pergunta 930: “Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.” Podemos considerar o Brasil como Pátria do Evangelho? Afinal, que país é este?

terça-feira, 1 de abril de 2014

Os verdadeiros patriotas fazem perguntas

Vivemos em uma época tumultuada no Brasil devido aos protestos da população nas ruas de várias cidades e ao reexame do golpe de 1964 que instaurou no país a ditadura civil-militar. Este período político se caracterizou por repressões violentas e gerou consequências sentidas até os dias atuais na sociedade brasileira, tais como o agravamento das desigualdades sociais, ao aprofundamento da violência institucional policial, dentre outras.
Ante este contexto complexo e desafiante, muito natural de se pensar qual o papel dos espíritas diante de tantos acontecimentos e as possíveis interpretações baseadas no arcabouço doutrinário. Mais ainda, surgem justas indagações sobre a participação ou ausência do espírita no universo da política partidária, das manifestações populares, do clamor pelas mudanças nas instituições da democracia representativa e da melhoria dos serviços públicos -transporte e segurança em destaque.
Os próprios movimentos espíritas, em especial os brasileiros, criaram discursos sobre a vocação de certas nações no concerto diplomático internacional. A crença mais difundida trabalha a ideia de Brasil como coração do mundo e pátria do evangelho. Haveria uma missão do nosso país de guiar espiritualmente o globo rumo ao estágio da regeneração. Nossa história autoriza e valida tal discurso? A violência colonial que nos marca ainda hoje, a ditadura recente e tantos fatores da sociedade em curso nos chamam atenção para uma discrepância notável entre um ideal romantizado em ambiente espiritista e os fatos rotineiros.
No aniversário do fatídico golpe, precisamos valorizar os questionamentos, advogar a liberdade de expressão, até para que mesmo as opiniões extremamente impopulares possam ser expressas. Thomas Jefferson, um dos pais da independência estadunidense, já trazia este ideal na organização daquela democracia nascente: “Prometo usar minhas faculdades críticas. Prometo desenvolver minha independência de pensamento. Prometo me educar de modo a poder formar minhas próprias opiniões.”
Há certamente um preço por tal conduta autônoma. A maioria de nós é a favor da liberdade de expressão quando existe perigo de nossas opiniões serem reprimidas, mas não ficamos tao contrariados se opiniões que desprezamos enfrentam censura aqui ou acolá. Conforme se lê na obra O mundo assombrado pelos demônios, capítulo homônimo ao artigo: “Em seu famoso livrinho On Liberty,o filósofo inglês John Stuart Mill afirmava que silenciar uma opinião é um ‘mal peculiar’. Se a opinião é correta, somos roubados da ‘oportunidade de trocar o erro pela verdade’; e, se está errada, somos privados de uma compreensão mais profunda da verdade em ‘sua colisão com o erro’. Se conhecêssemos apenas o nosso lado da argumentação, mal sabemos sequer esse pouco; ele se torna desgastado, logo aprendido de cor, não testado, uma verdade pálida e sem vida.”
O próprio Espiritismo incentiva, pela sua origem e natureza metodológica, científica, a liberdade de pensar e de consciência como seus pilares fundamentais. Faz-se mister questionarmos lucidamente o discurso ufanista-nacionalista surgido na década de 1930 dentro dos arraiais espíritas brasileiros sobre uma suposta missão da pátria, com argumentos ingênuos e superficiais. Observemos a Codificação Kardeciana, que registra em O Livro dos Espíritos: “837. Qual é o resultado dos entraves postos à liberdade de consciência? Constranger os homens a procederem em desacordo com o seu modo de pensar, fazê-los hipócritas. A liberdade de consciência é um dos caracteres da verdadeira civilização e do progresso.”

Somos todos convidados a perguntar, duvidar, criticar. Se não podemos pensar por nós mesmos, se não estamos dispostos a questionar a autoridade, somos apenas massa de manobra nas mãos daqueles que detêm o poder. Mas, se os cidadãos são educados e formam as suas próprias opiniões, aqueles que detêm o poder trabalham para nós.  Diante da história do nosso país, das atrocidades da ditadura civil-militar ora em pauta novamente em virtude dos 50 anos do golpe, precisamos ser mais críticos com relação ao discurso irrefletido de amplos setores dos movimentos espíritas sobre o Brasil pátria do Evangelho, bem como as consequências funestas decorrentes desta ideia, tais como a passividade social e o conluio com os opressores de todas as esferas (tanto políticas quanto espiritistas).