domingo, 27 de janeiro de 2013

As duas ditaduras


Pode parecer estranho ao leitor confrontar-se com este título num espaço virtual no qual se discutem ideias e ocorrem divulgações relacionadas aos trabalhos das Mocidades Espíritas (ME) de Juiz de Fora. Muito esperado que surja um espantamento inicial por conta dos “arquétipos coletivos” que são sutil ou explicitamente inculcados em nós, frequentadores ou seareiros dos grupos jovens, a respeito da natureza e organização dos mesmos. Afinal, é de senso comum o entendimento das ME como locais de livre manifestação do pensamento e das opiniões, ambientes de vera fraternidade e total entrosamento dos participantes. Será mesmo?
Em virtude do paradigma imposto há tanto tempo e da visão romântica (e ingênua) do que são e de como se organizam as ME, equivocadamente analisadas fora de contexto nos Centros Espíritas e nos Movimentos Espíritas, questionar este arquétipo soa heresia (o que nos deixaria profundamente satisfeitos), atitude de menoscabo ou raivosa. Esperamos que a leitura atenta e desapaixonada das linhas seguintes afastem tais impressões e permitam o compartilhamento de uma visão crítica com interesse de promover avanços nas práticas e nas interpretações do assunto em destaque. Nos referimos especificamente à uma ideia basilar de pseudo amor, fruto da não análise sistemática e do corporativismo de muitos, a qual gerou e alimenta a Ditadura da Afinidade e a Ditadura da Simpatia.
As duas ditaduras poderiam ser consideradas como apenas uma em termos práticos e sua divisão é apenas didática, com vistas a enfatizar que a 1ª leva necessariamente à 2ª. A pressão, muitas vezes subconsciente, em criar e manter uma aproximação das pessoas a qualquer custo gera uma simpatia forçada e também invasiva, embora, a priori, bem intencionada. Faz-se mister localizar a origem deste comportamento egóico nas estruturas mesmas dos Movimentos Espíritas, os quais estão permeados de “obssessão fraternal”, fiscalização de métodos e condutas autoritárias. Tudo em prol de uma tal Unificação... Em virtude de tal interpretação imatura de Espiritismo e de Evangelho, vemos sessões de abraços constrangidos, cumprimentos mentirosos e sorrisos amarelos. É preciso estar em sintonia com todos, amar todos e manter os outros sob vigilância para que ajam nesta adequação consensual.
O leitor poderá estar questionando a argumentação com uma lembrança: ele próprio ou outrem abraça e cumprimenta espontaneamente, com prazer e alegremente. Mas tal lembrança vem corroborar a ideia central do texto. Basta um questionamento simples: todos se sentem assim confortáveis? Todos desejam abraçar / serem abraçados? Os que não desejam, são respeitados? Os que não desejam são rotulados? Eis o ponto fundamental. Uma análise honesta e uma observação acurada demonstram inexoravelmente a coerção exercida, sutilemente praticada. Passemos aos exemplos.
O jovem que chega em uma das ME deve ser recebido gentilmente, o que habitualmente se traduz por ser abraçado, mesmo contra sua vontade. Se ele passa discretamente e busca um canto pra ficar quieto, logo será buscado por alguém muito simpático que o irá retirar desta situação e dar-lhe um afetuoso abraço...  não desejado. Isso se fugir ao montinho sorridente e dedicado da galera da recepção. O que dizer das dinâmicas? Sempre dá-se um jeito de forçar os presentes ao amplexo uns com os outros. O que pensar das “sensibilizações”? (ainda estou procurando a utilidade e a seriedade delas) O tormento de ver um sujeito à frente de uma multidão, conduzindo a atividade para um climax emotivo de lágrimas, mãos dadas e abraços efusivos. Os encerramentos ou “vibrações” nas quais todos tem de se levantar ao som de músicas espíritas, darem as mãos candidamente e rodarem feito borboletas ao redor da lâmpada. E claro, sem mencionar que todas interações são absolutamente fraternais, sem nenhuma segunda intenção jamais... Os Encontros formam um capitulo especial: todo mundo feliz, se abraçando o tempo todo, abraçando todo mundo. Seja por um dia ou mais. Os eventos que ocorrem no carnaval exigem mais persistência para a maratona de contatos e sorrisos sem fim.
É um exercício oportuno e elucidativo observar as pessoas fora das reuniões das ME. São poucas as que mantêm os hábitos de abraçamento e vínculos de simpatia...  justamente aqueles com os quais naturalmente se afinizam. Curioso, não? Insistimos que o problema não está em abraçar e manter a simpatias, mas sim no seu caráter totalitário. Por isso a alcunha de ditaduras, porque fruto de imposição dogmática e falta de criticidade das práticas. A Doutrina Espírita convida nosoutros ao estabelecimento de vínculos fraternais mobilizados pela convivência, na qual construímos as afinidades e simpatias, ganhamos a confiança uns dos outros e criamos intimidades, gradual e espontaneamente. A homozeinezação de condutas é a desgraça a ser expulsa dos arraiais espiritistas, sob o sério risco de superficializar as relações. Jesus nos ensinou o amor e não o pieguismo por guia nas experiências interpessoais. Lembremos do Nazareno lidando com as criaturas, sempre amando-as em cada ocasião, seja orientando, quer advertindo, e também dialogando. Nada de emocionalismo barato mas sim conversas intestinas e honestidade equilibrada.
O acolhimento ao outro, o amar ao próximo parte do princípio de respeito ao universo do sujeito, do acatamento de sua singularidade e de seu modo de ser. Afinidades são construídas no conviver, na medida em que existem comportamentos, sonhos, vontades em comum. Impor ao outro o meu afeto é desconhecer a orietação espírita no tocante ao livre-arbítrio, tão propalado e desconsiderado... Registra-se na 3ª parte de O Livro dos Espíritos, a obra fundamental do Espiritismo, a Lei de Liberdade. Não seria coerente exercê-la também nas proprias ME? Aliás, neste mesmo livro encontramos um item de grande utilidade nesta reflexão. Vejamos:
“390. A antipatia instintiva é sempre sinal de natureza má?
´De não simpatizarem um com o outro, não se segueque dois Espíritos sejam necessariamente maus. A antipatia, entre eles, pode derivar de diversidade no modo de pensar. À proporção, porém, que se forem elevando, essa divergência irá desaparecendo e a antipatia deixará de existir.´” (grifo nosso)
A diferença de pensar e, por extensão, de agir, é comum entre as pessoas e profundamente saudável no crescimento de todos nós. Aprendemos a nos posicionar num mundo de variedades, aprendemos com as visões alheias e que divergências não significam guerras nem ódio nem desunião. Lidando com as diferenças e buscando a resolução de conflitos através de diálogos sinceros amadurecemos para o Amor incondicional ensinado pelo Cristo, sem atitudes convencionais, sem culpas, medos, repressões ou recalques. Convidamos ao leitor que pondere sobre isto e analise as vivências nas ME (e suas atividades) o que e como ocorrem os relacionamentos: na base do respeito e da liberdade? ou de maneira imposta e superficial? Partindo das observações críticas terá melhores condições de se posicionar sobre o assunto e buscar vivências coerentes com as orientações do Mundo Maior, permeadas de amor sincero e lúcido, energia e racionalidade.
Vemos com bastante frequência nas ME a indignação devido à conduta de religiosos tentando impor suas visões de mundo ou suas interpretações bíblicas em nossas portas domésticas. Nos irritamos com os grupos de abraçadores que ficam nas ruas “oferecendo” seus amplexos e pensam que a sua generosidade significa obrigação de reciprocidade. Ora, como reclamar de tais procedimentos se algo semelhante acontece nos próprios grupos? Não seria a ocasião de uma pitada de autocrítica e mudança de comportamento? Menos hipocrisia e mais autenticidade? Que tal respeitarmos (sem cara de reprovação) as opções de não contato? Que tal dar a cada um a liberdade de ser e agir conforme seu próprio temperamento? E, se você quiser aceitar, minha despedida via Gilberto Gil: “Todo o povo brasileiro / Aquele abraço!”.