quinta-feira, 26 de julho de 2012

Santo Agostinho e o Espiritismo, parte 2: Agostinho na estrada de Damasco

por Fábio Fortes


O Cristo não nos deixou. Fugiu dos nossos olhos para que entremos no coração e, aí, o encontremos. Sim, separou-se de nós, com relutância, mas ei-lo aqui.
Agostinho, Confissões, IV, 19


Agostinho, como outros apóstolos do Cristianismo primitivo, será sempre lembrado pelos incessantes esforços de transformação despendidos ao longo de sua longa existência. Como Paulo, que na estrada de Damasco, viveu o momento culminante de sua conversão ao Cristianismo, se revelando, em seguida, fiel colaborador da Boa Nova, também Agostinho é representado como o estudioso maniqueísta, ou o filósofo cético, que irrompeu uma mudança essencial em sua vida, abandonando hábitos e formas de vida, em prol da vivência pura da mensagem cristã.

Diferente de Paulo, entretanto, e de forma talvez mais parecida com o que ocorre com cada um de nós, a “estrada de Damasco” de Agostinho não se realizou como um evento particular em determinado passo de sua vida, mas foi fruto de situações e reflexões ao longo de toda sua existência, mesmo depois de sua conversão.

Nascido em Tagaste, no ano de 354, sua vida até os 32 anos seguiu o padrão da de um jovem que pôde se educar segundo as convenções da época. Na fase adulta, tornou-se mestre de gramática e retórica, tendo ensinado aos jovens de Tagaste, Cartago, Roma e Milão os recursos e estratégias verbais de persuasão retórica, além da leitura de textos da tradição clássica. No século IV, o norte da África, como muitas outras partes do Mediterrâneo, era uma província do Império Romano e as disciplinas de Retórica e Gramática eram os caminhos necessários para o cidadão culto atingir a prestigiosa carreira pública política ou forense. Ser mestre de retórica naquela época, era, por assim dizer, conviver com personagens do topo da escala social.

Segundo nos narra em suas Confissões, Agostinho nasceu de uma mãe já convertida ao Cristianismo, Santa Mônica, e de um pai pagão, Patrício. Desde criança, sentiu dentro de si um apelo à compreensão das coisas, que lhe levou à crença em Deus; no entanto, sem compreendê-lo, buscou diferentes doutrinas filosóficas e religiosas, entre as quais o maniqueísmo, o platonismo e o ceticismo, que lhe ilustraram o espírito com o interesse e conhecimento das letras, mas não satisfizeram, ao longo da vida, a sua sede de saber. Ao mesmo tempo, confessa ter sido arrastado pelos interesses mundanos da glória, do destaque social e pelos apelos da sensualidade.

É intrigante pensar que, de repente, como Paulo, na estrada de Damasco, Agostinho também, em dado momento da vida, decidiu abrir mão da carreira prestigiosa de mestre de retórica em Milão e da satisfação dos prazeres imediatos do sexo, das ambições políticas e materiais. A conversão de Agostinho se afigurou, muitas vezes, ao longo da história, como um evento milagroso, que lhe rendeu, afinal, o título de “Santo” e “Doutor da Igreja”. De fato, após os 32 anos, Agostinho não hesitaria em voltar para sua obscura terra natal, doar seus bens e seguir o Cristo.

No entanto, a leitura das Confissões já revela que a transformação foi um processo demorado, resultado, por um lado, da reflexão nunca interrompida sobre os eventos da vida, e, por outro, dos questionamentos sobre os conhecimentos obtidos nos livros. Para a conversão agostiniana, entram, sem dúvida, também o exemplo de sua mãe, a crente devota e fervorosa do Cristo; a inteligência de Santo Ambrósio, então Bispo de Milão, que lhe ofereceu uma maneira de interpretar a Bíblia de forma racional; e o impacto das provas da vida, com a perda de um amigo de infância. No entanto, também se destaca na transformação agostiniana um perene olhar para dentro de si, um autoquestionamento contínuo, auxiliado pelo estudo incessante das doutrinas e filosofias de sua época, autorreflexão que flagramos, por exemplo, ao lermos suas Confissões. Essa obra, em particular, é o grande exemplo daquele exame metódico e diário que Agostinho nos recomenda, enfim, na questão 919 de O Livro dos Espíritos, com a diferença de que, em vez de um dia, a obra faz uma revisão de toda uma vida.

Tais elementos se somam à constatação, depois adquirida, de que a transformação é, de fato, um movimento da alma, que, senhora da vontade, modifica a si própria, libertando-se do erro, que não é uma fraqueza da carne, mas um atributo provisório do espírito: A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma dá uma ordem a si mesma, e resiste! Ordena a alma à mão que se mova, e é tão grande a facilidade que o mandado mal se distingue da execução. (Confissões, VIII, 25). É na alma, o espírito imortal, que reside a fraqueza e o erro, não no corpo. Portanto, segundo Agostinho, compete a esta o exercício de sua vontade, que, tal qual comanda o corpo, é também capaz de comandar-se a si mesma.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Santo Agostinho e o Espiritismo, parte 1: Agostinho segundo o Espiritismo

Por Fábio Fortes

Criaste-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.
(Agostinho, Confissões, I, 1)


No movimento espírita contemporâneo, o nome de Santo Agostinho é quase sempre associado à questão 919 do Livro dos Espíritos, em que Agostinho, como participante da Falange da Verdade, nos esclarece sobre a necessidade do autoconhecimento para resistirmos aos apelos do mal. Na sequência da mesma questão, é o próprio Agostinho quem nos indica uma maneira prática de se atingir o conhecimento de si mesmo, através do exame diário e metódico dos pensamentos e ações, e a consequente mudança de hábitos nos dias seguintes.

Não por acaso, a questão, que talvez seja uma das mais lembradas pelos espíritas, encerra, sob o nome do preclaro filósofo da doutrina cristã, duas das ideias mais caras à Doutrina Espírita: o autoconhecimento e a transformação. Por outro lado, enquanto a voz de Agostinho seja sempre relembrada nos estudos doutrinários pelas suas proverbiais clareza e profundidade de análise da questão oferecida por Kardec, poucos, entretanto, conhecem um pouco mais do pensamento e da vida de Agostinho e dos ensinamentos legados à humanidade durante sua exemplar e missionária passagem pela Terra.

O Agostinho da Revelação Espírita, é, como diz Erasto, em o Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 1, it. 11, o “espírito que vê com olhos que não via enquanto homem”, é o colaborador espiritual que revisita a Terra em nova missão, aliado a tantos outros companheiros espirituais encarregados de fazer florescer no mundo a Lei da Verdade, codificada por Allan Kardec. Agostinho, como, de resto, também Emmanuel, João Evangelista, Erasto, São Vicente de Paulo, entre outros, apresentam a Doutrina dos Espíritos como a consequência maior de uma série de comunicações ostensivas entre o mundo visível e o invisível. Em conjunto, proclamam: “chegaram os tempos marcados pela Providência para uma manifestação universal e que, sendo eles os ministros de Deus, e os agentes de sua vontade, têm por missão instruir e esclarecer os homens, abrindo uma nova era para a Regeneração da Humanidade” (O Livro dos Espíritos, prolegômenos).

O colaborador que se soma à falange de espíritos do bem, imbuído da nobre missão de esclarecer o Evangelho pelas novas luzes do Consolador Prometido, não é outro, senão o mesmo Agostinho que, séculos antes, exemplificara com sua vida e obra, a necessidade de transformação por intermédio do autoconhecimento. Isso quer dizer que o outrora Bispo de Hipona já deixara em sua vida uma exemplificação para o que, na Era do Espírito, ele vem nos relembrar: a transformação moral e o autoconhecimento. Ademais, como também Erasto nos esclarece, este Agostinho que assina, entre outros, a obra espírita, não veio destruir o que edificou com o testemunho de sua vida no longínquo século IV, quando o mundo civilizado e pagão, em ruína, se abria para a construção cristã. Afirma Erasto: “Liberta, sua alma entrevê claridades novas, compreende o que antes não compreendia. Novas ideias lhe revelaram o sentido verdadeiro de algumas sentenças. (...) Sem renegar a sua fé, pode constituir-se disseminador do Espiritismo, porque vê cumprir-se o que fora predito.”

Por encontrar no Agostinho de Hipona a predição dos saberes que tanto admiramos no Agostinho da Doutrina Espírita, é que gostaríamos de destacar, nas próximas edições, alguns aspectos do pensamento agostiniano que perduram à ação do tempo e às mudanças sociais; aspectos, em suma, que, inalterados com a sucessão dos dias, continuam a ser expressões da revelação divina, no seu caráter de universalidade e atemporalidade, por reconhecermos que, na vida terrena de Agostinho, possamos encontrar, como ele já nos indica, uma maneira prática de nos libertarmos de nossas dificuldades presentes: Fazei o que eu fazia, quando vivia na Terra...